História De Israel – Teologia 31.22
CAPÍTULO 3
JOSÉ É VENDIDO POR SEUS IRMÃOS A UNS ISMAELITAS, QUE O
VENDEM NO
EGITO. A SUA CASTIDADE É CAUSA DE QUE O LANCEM NA PRISÃO.
LÁ,
INTERPRETA DOIS SONHOS E, EM SEGUIDA, DOIS OUTROS A FARAÓ,
QUE O
NOMEIA GOVERNADOR DE TODO O EGITO. UMA CARESTIA OBRIGA OS
SEUS
IRMÃOS AFAZEREM DUAS VIAGENS AO EGITO, NA PRIMEIRA DAS QUAIS
JOSÉ RETÉM SIMEÃO, E NA SEGUNDA, BENJAMIM. DÁ-SE EM SEGUIDA
A
CONHECER A ELES E MANDA BUSCAR O SEU PAI.
65. Gênesis 37. Os irmãos de José viram-no chegar com prazer,
não porque vinha da parte de seu pai, mas porque, considerando-o inimigo, se
regozijavam por vê-lo cair-lhes nas mãos. E temiam tanto perder a ocasião de se
desfazer dele que o queriam matar naquele mesmo instante. Porém Rúben, o mais
velho, não pôde aprovar tamanha crueldade. Fez-lhes ver a enormidade do crime
que queriam cometer, o ódio que atrairiam contra eles e quão abominável seria o
assas-sínio de um irmão, se um simples homicídio já causava horror a Deus e aos
homens. Além disso, eles matariam de dor um pai e uma mãe que, além do amor que
tinham por José, por causa de sua bondade, nutriam-lhe uma ternura particular,
por ser ele o mais obediente de todos os filhos.
Assim, ele os conjurava a temer a vingança de Deus, que via
já o cruel desígnio concebido em seus corações, que os perdoaria, contudo, se
eles se arrependessem e compensassem o seu crime, mas que os castigaria muito
mais severamente se o cometessem. Que considerassem, pois, que todas as coisas
a Ele eram gentes: as açõetipraticadas no$ desertos não passariam mais.>
despercebidas que as cometidas nas cidades, e a própria consciência
servir-lhes-ia de algoz. E acrescentou que, se jamais fora permitido matar um
irmão, mesmo havendo ofensa da parte dele, e se, por outro lado, é sempre louvável
perdoar aos amigos quando eles erram, por muito maior razão eram eles obrigados
a não fazer mal a um irmão do qual jamais haviam recebido injúria alguma. A
simples consideração pela juventude dele deveria levá-los não somente a sentir
compaixão como também a ajudá-lo e protegê-lo. A causa que os instigava contra
ele tornava-os ainda mais culpados, pois em vez de invejar a felicidade que lhe
tocaria e as vantagens com que Deus se comprazia em enriquecê-lo, eles deveriam
regozijar-se e considerá-las como suas também, pois, sendo-lhe tão próximos, de
tudo poderiam participar. Deviam, por fim, imaginar qual seria o furor e a
indignação de Deus contra eles se levassem à morte aquele a quem Ele havia
julgado digno de receber de sua mão tantos benefícios, se ousassem tirar-lhe os
meios de o favorecer com suas graças.
Vendo Rúben que os irmãos, em vez de se comoverem com essas
palavras, cada vez mais se obstinavam em sua funesta resolução, propôs
escolherem um meio mais suave de a executar, a fim de tornar a sua falta, de
algum modo, menos criminosa: se quisessem seguir o seu conselho, deveriam
contentar-se em colocar José numa cisterna próxima, deixando-o lá para morrer,
sem manchar as mãos com sangue. Eles aprovaram a proposta, e Rúben desceu-o com
uma corda à cisterna, que estava quase seca, e em seguida foi procurar
pastagens para o seu rebanho. Mal ele havia partido, judá, um dos filhos de
)acó, viu passando uns mercadores árabes, descendentes de Ismael que vinham de
Galaade, os quais levavam para o Egito perfumes e outras mercadorias. Então ele
aconselhou os irmãos a vender José, pois desse modo ele iria morrer num país
distante e eles não poderiam ser acusados de lhe terem tirado a vida. Eles
negociaram com os mercadores, retiraram da cisterna o irmão, que contava então
dezessete anos, e o venderam por vinte peças de prata aos ismaelitas.
Quando retornou, à noite, Rúben, que pretendia salvar José,
foi secretamente à cisterna e chamou-o diversas vezes. Vendo que ele não
respondia, imaginou que os irmãos o houvessem matado e censurou-os severamente.
Eles então foram obrigados a contar-lhe o que haviam feito, e o seu pesar foi
desse modo um tanto mitigado. Os irmãos discutiram em seguida o que fazer para
evitar ao pai a suspeita de um crime. Acharam que a melhor maneira era tomar as
vestes que haviam tirado de José antes de pô-lo na cisterna, rasgá-las e
molhá-las no sangue de um cabrito, levando-as assim manchadas ao pai, a fim de
fazê-lo acreditar que um animal feroz o havia devorado. Foram então
apressadamente para casa.
O pai já estava desconfiado de que alguma desgraça
acontecera a José. Os filhos disseram-lhe que não o tinham visto, mas haviam
encontrado as suas vestes manchadas de sangue e rasgadas, as que de fato ele
usava quando saíra de casa, e assim tinham todos os motivos para crer que ele
fora devorado por um animal feroz. Jacó, que não havia pensado em tão dura
perda, mas julgara apenas que o filho fora aprisionado e levado como escravo,
quando viu as vestes não duvidou mais de sua morte, pois as reconheceu como
sendo as que ele usava ao sair de casa para ir ter com os irmãos. Foi então
tomado de grande dor, tão intensa que mesmo por um filho único não se teria
chorado tanto. Cobriu-se de saco e não ouviu as palavras de consolação que os
outros filhos lhe dirigiam.
66. Gênesis 39. Quando os mercadores ismaelitas que haviam
comprado José chegaram ao Egito, venderam-no a Potifar, mordomo do palácio do
rei Faraó, que não o tratou como escravo, mas o fez educar com cuidado, como
uma pessoa livre, e deu-lhe a direção de sua casa. José cumpria o seu dever com
a inteira satisfação de seu senhor: a mudança de condição não afetou
absolutamente a sua virtude, e ele mostrou que um homem, quando é
verdadeiramente sensato, ajuizado, procede com igual prudência na prosperidade
e na adversidade.
A mulher de Potifar ficou tão impressionada com o espírito e
a beleza de José que se enamorou dele perdidamente. E, como o julgava pela
condição a que a sorte o havia reduzido, imaginando que na situação de escravo
ele se julgaria feliz por ser amado pela sua senhora, não teve dificuldade em
decidir manifestar-lhe a sua paixão. José, porém, considerando um grande crime
fazer tal afronta a um senhor ao qual era devedor de tantos favores, rogou-lhe
que não exigisse dele uma coisa que não podia conceder sem passar como o homem
mais ingrato do mundo, embora em todas as outras ocasiões soubesse o quanto era
devedor a ela.
A recusa só fez aumentar a paixão da mulher. Ela imaginava
ainda que José não seria para sempre inflexível, e resolveu tentar outro meio.
Escolheu para isso o dia de uma grande festa, à qual as mulheres costumavam
comparecer, e fingiu estar doente, a fim de ter um pretexto para não sair e
tomar assim ocasião para solicitar José. Dessa maneira, encontrando-se em plena
liberdade de falar-lhe e de insistir, disse-lhe: "Vós teríeis feito muito
melhor atendendo logo às minhas súplicas, concedendo-me o que vos peço, à minha
qualidade e à violência do meu amor, que me obriga, embora eu seja vossa
senhora, a rebaixar-me até o ponto de vos rogar. Se fordes sensato, reparai a
falta que cometestes. Não vos resta mais desculpa alguma, pois se esperáveis
que eu vos procurasse uma segunda vez, faço-o agora, e com maior afeto ainda.
Fingi estar doente e preferi o desejo de ver-vos ao prazer de assistir a uma
grande festa. Se tivésseis alguma suspeita de que o que eu vos digo é uma
cilada, para vos experimentar, a minha perseverança não permitirá mais dúvidas
de que a minha paixão é verdadeira. Escolhei, pois, agora ou o favor que vos
ofereço, correspondendo ao meu amor e esperando de mim, para o futuro, favores
ainda maiores, ou os efeitos de minha ira e de minha vingança, se preferires à
honra que vos concedo uma vã opinião de castidade. Se isso acontecer, não
imagineis que alguma coisa haverá capaz de salvar-vos, pois vos acusarei
perante o meu marido de terdes querido atentar contra a minha honra. E, por
mais que possais dizer e provar o contrário, ele prestará sempre mais fé às
minhas palavras que às vossas justificativas".
Após haver falado dessa maneira, juntou as lágrimas aos
rogos. Mas nem as solicitações nem as ameaças conseguiram demover José de
faltar ao seu dever. Ele preferiu expor-se a tudo do que se deixar levar por um
prazer criminoso. Julgou que não haveria castigo que ele não merecesse se
cometesse tal falta, e apenas para agradar uma mulher. Então fez-lhe ver que
ele também era devedor ao marido dela, acres-centando que os prazeres legítimos
no casamento eram preferíveis aos produzidos por uma paixão desregrada; que
estes últimos apenas se passavam, causando um arrependimento inútil; e que
viveriam no contínuo temor de serem descobertos, mas nada havia a temer da
fidelidade conjugai e do andar com confiança na presença de Deus e dos homens.
Se ela se mantivesse casta, conservaria a autoridade que tinha para dar-lhe
ordens, ao passo que perderia essa mesma autoridade cometendo com ele um crime
que ele poderia sempre atirar-lhe em rosto. Enfim, a tranqüilidade de uma
consciência que de nada se sente culpada era infinitamente preferível à
inquietação daqueles que precisam esconder pecados vergonhosos.
Essas palavras e outras semelhantes que José proferiu,
procurando convencê-la a moderar a sua paixão e a compreender o próprio dever,
só a fizeram inflamar-se ainda mais, e ela tentou obrigá-lo a conceder-lhe o
que não podia, sem um crime, pretender dele. Não podendo então tolerar por mais
tempo tão grande vexame, ele escapou, deixando, porém, o manto nas mãos dela.
Ofendida com a repulsa de José e temendo que ele a denunciasse ao marido,
resolveu precedê-lo e vingar-se.
Assim, irritada por não ter podido satisfazer a sua paixão
brutal, quando o marido regressou e, surpreso, perguntou-lhe a causa de vê-la
naquele estado, ela respondeu: "Não mereceis viver se não castigardes como
merece esse pérfido e detestável servidor, que, esquecendo-se da miséria a que
estava reduzido quando o comprastes e da excessiva bondade com que o tratais,
em vez de mostrar gratidão, teve a ousadia de atentar contra a minha honra e de
assim querer fazer-vos a maior afronta que jamais poderíeis receber. Escolheu
para executar o seu intento este dia de festa e a vossa ausência. E dizei,
depois disto, que a única causa desse pudor e dessa moderação que ele afeta não
é o temor que tem de vós! A honra que lhe concedestes, sem que ele a merecesse
e que não teria ousado esperar, levou-o a essa horrível insolência. Ele julgou
que, por lhe teres confiado todos os vossos bens e dado toda autoridade sobre
os demais servidores, ainda que mais velhos que ele, lhe era permitido levar os
seus desejos pessoais até vossa esposa".
67. Depois de lhe ter falado dessa maneira, e acrescentando
lágrimas às palavras, mostrou-lhe o manto de José, afirmando que lhe havia
ficado nas mãos enquanto resistia. Potifar, convencido por aquelas palavras e
pelas lágrimas, e dando mais valor do que devia ao amor que tinha por ela, não
pôde deixar de acreditar no que acabava de ouvir e ver. Assim, louvou-lhe muito
a sabedoria e, sem indagar da verdade, não duvidou de que José fosse realmente
culpado e mandou-o colocar na prisão. Experimentava uma alegria secreta pela
virtude da esposa, da qual julgava não poder duvidar depois da prova tão
convincente que ela lhe havia mostrado.
68. Enquanto o egípcio se deixava enganar dessa maneira,
José, em tão amarga e injusta vicissitude, colocou nas mãos de Deus a
justificação de sua inocência. Ele não quis se defender nem dizer de que modo
as coisas se haviam passado. Mas, suportando com paciência a prisão e a
humilhação, confiava em Deus, ao qual tudo é manifesto, que conhecia a causa de
sua infelicidade e que era tão poderoso quanto os que o faziam sofrer eram
injustos. Ele experimentou logo os efeitos da divina providência. Pois o
carcereiro, considerando a diligência e fidelidade com que ele fazia tudo o que
lhe era mandado e tocado pela majestade estampada em seu rosto, tirou-lhe as
cadeias, tratou-o melhor que aos outros e tornou-lhe a prisão mais tolerável.
Gênesis 40. Como nas horas em que se permite aos
prisioneiros tomar um pouco de descanso eles costumam conversar sobre a sua
infelicidade, José fez amizade com um mordomo do rei, ao qual o príncipe muito
havia estimado, mas o colocara na prisão por causa de um descontentamento que
tivera com ele. Esse homem, percebendo a virtude de José, contou-lhe um sonho
que tivera e rogou-lhe que o explicasse, pois se sentia muito infeliz, não
somente por ter perdido as boas graças de seu senhor, mas também por estar
sendo perturbado com sonhos que ele julgava só poderiam vir do céu.
"Parecia-me", disse ele, "que eu via três cepos de videira,
carregados com grande quantidade de uvas. E, estando maduros os cachos, eu os
espremia, para tirar-lhes o caldo, numa taça que o rei tinha na mão e que eu
apresentava a sua majestade, que o achava delicioso".
José ouviu-o e disse-lhe que tivesse boas esperanças, pois o
sonho significava que dentro de três dias ele sairia da prisão, por ordem do
rei, e voltaria às suas boas graças. "Pois", acrescentou, "Deus
concedeu aos frutos da videira diversos e excelentes usos e uma grande virtude.
Serve para se lhe fazerem sacrifícios, para confirmar a amizade entre os
homens, para fazê-los esquecer a inimizade e para mudar a sua tristeza em
alegria. E, assim como esse licor que vossas mãos espremeram foi favoravelmente
recebido pelo rei, não duvideis de que esse sonho prenuncia a vossa saída da
miséria em que estais há tantos anos, quantos vos pareceu ver em cepos de
videira. Mas, quando tiverdes sabido que as minhas predições são verdadeiras,
não vos esqueçais, na liberdade de que gozareis, daquele que deixastes preso
ainda às cadeias. Lembrai-vos tanto mais na vossa felicidade da minha desgraça,
pois não foi por ter cometido crime que sou castigado, mas por ter preferido,
por um sentimento de dever e de virtude, a honra de meu senhor à volúpia criminosa".
Seria inútil dizer qual foi a alegria do copeiro-mor ante uma interpretação tão
favorável de seu sonho e com que impaciência esperava a sua realização.
Aconteceu, porém, em seguida, outra coisa de todo contrária.
69. Um padeiro-mor do
rei, que estava preso com eles e escutara essas palavras, teve esperanças de
que um sonho que também tivera lhe poderia ser favorável. Contou-o a José e
rogou-lhe que o explicasse. "Parecia-me", disse ele, "que eu
levava na cabeça três cestos, dois dos quais estavam cheios de pão e o terceiro
de iguarias diversas, das que se servem na mesa do rei, e alguns passarinhos as
levavam sem que eu pudesse evitá-lo". José, depois de escutá-lo
atentamente, declarou que teria muito desejado dar-lhe uma explicação favorável,
mas era obrigado a dizer que os dois primeiros cestos significavam que só lhe
restavam dois dias de vida, e o terceiro, que ele seria enforcado e comido
pelos pássaros.
70. Tudo o que José havia predito aconteceu. Três dias
depois, o rei mandou, durante um grande banquete, no dia de seu nascimento, que
enforcassem o padeiro-mor e se tirasse da prisão o copeiro-mor» para
recolocá-lo no cargo. Mas a ingratidão deste o fez esquecer a promessa, e José
continuou a sofrer por mais dois anos as amarguras inerentes a um cárcere.
Deus, todavia, que jamais abandona os seus, serviu-se, para dar-lhe a
liberdade, de um expediente, o qual vou relatar.
O rei teve numa mesma noite dois sonhos, que julgou serem
péssimos pressá-gios, embora não se lembrasse da explicação que simultaneamente
lhe fora dada. No dia seguinte, ao despontar do dia, mandou buscar os homens
mais sábios de todo o Egito e ordenou-lhes que os decifrassem. Eles responderam
que não o podiam fazer, aumentando-lhe ainda mais o temor. Esse fato despertou
na memória do copeiro-mor a lembrança de José e do dom que ele possuía para
inter-pretar sonhos. Falou dele ao rei, contando-lhe como José havia explicado
o seu sonho e o do padeiro-mor e como os fatos confirmaram a veracidade de suas
palavras. Disse-lhe também que José era escravo de Potifar — o qual o havia
posto na prisão — e hebreu de nascimento, oriundo de uma família ilustre,
segundo ele mesmo afirmava. E, caso sua majestade desejasse mandar buscá-lo,
não julgasse dele pelo estado infeliz em que se encontrava, mas poderia saber
por seu intermédio o que significavam aqueles sonhos.
Ante essa sugestão, o rei mandou imediatamente buscar a
José, tomou-o pela mão e disse: "Um de meus oficiais falou-me de vós, de
maneira tão elogiosa que a opinião que tenho de vossa sabedoria faz-me desejar
que me expliqueis os meus sonhos, tal como explicastes o dele, sem que o temor
de me zangar ou o desejo de me agradar vos façam mudar algo da verdade, ainda
que me reveleis coisas desagradáveis. Parecia-me que, passeando ao longo do
rio, eu via sete vacas bem grandes e muito gordas, que saíam para ir aos
pântanos. Em seguida, vi outras sete, muito feias e muito magras, que foram ao
encontro das primeiras e as devoraram, sem que com isso saciassem a fome.
Acordei muito perturbado a respeito do que esse sonho poderia significar e,
tendo dormido de novo, tive um outro, que me pôs em inquietação ainda maior.
Parecia-me que eu via sete espigas saídas de um mesmo pé, todas maduras e tão
gordas que o peso dos grãos as fazia inclinar-se para a terra. Perto dali, sete
outras espigas, muito secas e magras, devoraram então aquelas sete tão belas,
deixando-me estupefato e no desassossego em que me encontro ainda agora".
Depois de o rei assim haver falado, José respondeu-lhe:
"Os dois sonhos de vossa majestade significam a mesma coisa. As sete vacas
magras e as sete espigas áridas que devoraram as vacas bem nutridas e as
espigas gordas representam a esterilidade e a carestia que assolarão o Egito
dura/^e sete anos e que consumirão toda a fertilidade e a abundância dos sete
anos precedentes. Parece que será difícil remediar tão grande mal, porque as
vacas magras que devoraram as outras não foram ainda saciadas. Mas Deus não
prediz tais coisas aos povos para amedrontá-los, de modo que eles se deixem
abater pelo desânimo, mas, ao contrário, para obrigá-los por uma sábia
previdência a evitar o perigo que os ameaça. E assim, se agradar a vossa
majestade mandar que se reserve o trigo colhido nestes anos tão férteis, para
distribuí-lo na época da necessidade, o Egito não sentirá absolutamente a
esterilidade dos outros anos".
O rei, admirado da inteligência e sabedoria de José,
perguntou-lhe o que fazer naqueles anos de abundância para tornar suportável a
esterilidade dos outros. José respondeu-lhe que era necessário recolher o
trigo, de sorte que se gastasse apenas o necessário e se conservasse o resto
para prover à necessidade futura. E acrescentou que era ainda preciso deixar
aos lavradores apenas o que lhes fosse necessário para semear a terra e para viver.
71. Faraó, então, não menos satisfeito com a prudência de
José do que com a explicação dos sonhos, julgou não poder fazer escolha melhor
do que o próprio ]osé para a execução de um conselho tão sensato. Assim,
deu-lhe plenos poderes para determinar o que julgasse mais conveniente para o
seu trabalho e para o bem-estar de seus súditos. Como sinal da autoridade com
que o honrava, permitiu que se vestisse de púrpura, usasse um anel com o selo
real e fosse conduzido sobre um carro por todo o Egito. José, em seguida, fez
executar as ordens e mandou recolher todo o trigo aos celeiros do rei, deixando
ao povo somente o necessário para semear e viver, sem dizer por que razão assim
procedia. Ele tinha então trinta anos, e o rei o fez nomear Psontomfance, por causa
de sua inteligência (esse nome significa, em língua egípcia, "aquele que
penetra as coisas ocultas").
72. Faraó fez José
desposar uma jovem de nobre família, chamada Asenate, cujo pai se chamava
Potífera e era sacerdote de Om. Dela teve dois filhos, antes que chegasse a
carestia, e por isso chamou ao primeiro Manasses, isto é,
"esquecido", porque a prosperidade em que então se encontrava fazia-o
esquecer as aflições passadas, e ao segundo chamou Efraim, isto é,
"restabelecimento", porque havia sido reintegrado à liberdade de seus
antepassados.
73. Depois que os
sete anos de abundância preditos por José se passaram, a carestia começou a ser
tão grande que, nesse mal imprevisto, todo o Egito recorreu ao rei. José, por
ordem do soberano, distribuía o trigo, e o seu sábio proceder conquistou-lhé um
afeto geral, tanto que todos o chamavam de "salvador do povo". Ele
não vendeu trigo somente aos egípcios, mas também aos estrangeiros, porque
estava convencido de que todos os homens estão unidos por um estreito liame, de
modo que os que se encontram na abundância estão obrigados a socorrer os outros
nas suas necessidades.
74. Cênesis 42. Como o Egito não era o único país assolado
pela carestia, pois o flagelo se estendia a várias outras províncias, entre
outras, a própria Canaã, Jacó, sabendo que se vendia trigo no Egito, mandou
para lá todos os seus filhos, para comprar o alimento — todos exceto Benjamim,
filho de Raquel e irmão de pai e mãe de José, que reteve junto de si.
Quando os dez irmãos chegaram ao Egito, dirigiram-se a José
para pedir-lhe que lhes mandasse vender trigo. Tinha ele tanto prestígio que
teria sido inútil recorrer diretamente ao rei. Ele reconheceu imediatamente
todos os seus irmãos, mas eles não o reconheceram, porque José era ainda muito
jovem quando o venderam, e sua fisionomia estava mudada. Além disso, jamais
teriam imaginado vê-lo em tal condição e poder. José resolveu experimentá-los,
depois de recusar vender-lhes o trigo, acusando-os de serem espiões e de juntos
conspirarem contra o rei. Declarou também que eles fingiam ser irmãos, embora
se parecessem, mas que se haviam reunido de vários lugares, não sendo possível
que um só homem tivesse tantos filhos, todos tão bem feitos, uma rara
felicidade, que não acontece nem mesmo aos reis. Ele assim falou somente para
ter notícias de seu pai, do estado de seus negócios durante a sua ausência e de
seu irmão Benjamim, que temia tivessem também feito morrer pela mesma inveja da
qual ele próprio já havia sentido o efeito.
As palavras de José os deixaram atônitos e, para se
justificarem de tão grave acusação, responderam-lhe por boca de Rúben, o mais
velho: "Nada está mais longe do nosso pensamento que vir até aqui como
espiões. A carestia, que assola também a nossa pátria, obrigou-nos a recorrer a
vós, porque soubemos que a vossa bondade, não se contentando em remediar as
necessidades de vossos súditos e do rei, vai além das fronteiras, em socorro
das necessidades dos estrangeiros, permitindo-lhes também comprar o trigo.
Quanto a dizermos que somos irmãos, basta olhar os nossos rostos para se notar,
pela semelhança, que falamos a verdade. Nosso pai, que é hebreu, chama-se Jacó.
Ele teve, de quatro mulheres, doze filhos, e fomos felizes durante o tempo em
que vivíamos todos. Porém, depois da morte de um deles, chamado José, todas as
coisas nos foram adversas. Nosso pai não se pode consolar de sua perda, e a sua
extrema aflição não nos causa menor dor que a que sentimos com a morte de nosso
irmão, tão querido e tão amável. O motivo que nos traz aqui é somente comprar o
trigo. Deixamos com o nosso pai o mais moço de nossos irmãos, de nome Benjamim,
e se vos aprouver man-dar buscá-lo, sabereis que vos dizemos a verdade e
falamos sinceramente".
Essas palavras deram a conhecer a José que nada mais devia
temer por seu pai ou por seu irmão. No entanto ordenou que os pusessem na
prisão, para serem interrogados comodamente. Fê-los voltar três dias depois e
disse-lhes: "Para me certificar de que não viestes aqui com mau desígnio
contra a segurança do rei e de que sois todos irmãos e filhos do mesmo pai,
quero que me deixeis um dentre vós, que ficará em completa segurança comigo. E,
depois de terdes regressado com o trigo que pedirdes, voltareis aqui trazendo o
vosso irmão menor, que deixastes com ele". A ordem deixou-os atônitos, e,
lastimando a própria infelicidade, reconheceram que Deus os castigava, com
justiça, pela grande crueldade deles para com José. Por isso Rúben,
censurando-os severamente, disse-lhes que as lamúrias eram inúteis e que era
necessário suportar com firmeza o castigo, o qual bem mereciam. Vividamente
sentidos, puseram-se de acordo.
Como falavam em língua hebraica, julgavam que ninguém os
entendia. José, no entanto, ficou tão comovido ao vê-los quase levados ao
desespero que, não podendo reter as lágrimas e não querendo ainda dar-se a
conhecer, retirou-se da presença deles. Tendo voltado em seguida, reteve Simeão
como refém, até que trouxessem o irmão menor. Então deu4hes permissão para
comprar o trigo e partir. Entretanto ordenou que secretamente recolocassem nos
sacos o dinheiro que haviam entregado em pagamento, o que foi feito.
75. De volta a Canaã, eles narraram ao pai tudo o que se
havia passado: como os haviam tomado por espiões, como o governador não quisera
acreditar neles, apesar de terem dito que eram todos irmãos e que tinham ainda
um irmão menor, o qual havia ficado com o pai, e como conservariam Simeão como
refém até que levassem Benjamim. Pediram-lhe então que enviasse Benjamim com
eles, sem nada temer pela sua sorte. Jacó, sentindo-se já bastante pesaroso
pelo fato de Simeão ter ficado no Egito, achou que a morte lhe seria mais suave
que o risco de perder também a Benjamim. E recusou-se deixá-lo partir, embora
Rúben acrescentasse aos seus rogos a proposta de entregar-lhe os próprios filhos,
para Jacó deles dispor como bem entendesse se alguma desgraça sobreviesse a
Benjamim, mas nem assim pôde fazê-lo consentir. A resistência do pai pôs os
irmãos em indizível agonia, que aumentou muito quando encontraram o dinheiro
nos sacos de trigo.
Gênesis 43. A carestia continuava, e, quando o trigo que
haviam comprado estava terminando, Jacó começou a pensar em mandar Benjamim ao
Egito, pois os seus irmãos não ousavam retornar sem ele. Embora a necessidade
aumentasse e eles redobrassem as instâncias, Jacó não conseguia decidir-se. Em
tal conjuntura, Judá, que era de natureza ousada e violenta, tomou a liberdade
de dizer-lhe que havia exagero em sua inquietação a respeito de Benjamim, pois,
quer ficasse junto dele, quer se afastasse, nada lhe poderia acontecer contra a
vontade de Deus; que aquele cuidado inútil punha em risco a sua própria vida e
a de todos os seus, pois só poderiam subsistir pelo auxílio que trouxessem do
Egito; que deveriam considerar que o atraso no regresso talvez levasse os egípcios
a executar Simeão; que, segundo a sua piedade, deveria confiar a Deus a
conservação de Benjamim; e que, por fim, prometiam trazê-lo são e salvo ou
então morrer com ele.
Jacó não pôde resistir a tão fortes razões e deixou partir
Benjamim. Deu-lhes o dobro do dinheiro necessário para comprar o trigo,
acrescentando vários presentes para José, dentre as coisas mais preciosas que
havia na terra de Canaã: bálsamo, resinas, terebintina e mel. Esse pai, de
natureza tão suave e terna, passou todo aquele dia imerso em grande dor, ao ver
partir todos os seus filhos. Também estes saíram no temor de que o pai não
pudesse resistir a tão grade aflição, mas à medida que se adiantavam na viagem,
consolavam-se com a esperança de uma melhor sorte.
76. Logo que chegaram ao Egito, dirigiram-se ao palácio de
José e, temendo que os acusassem de terem roubado o dinheiro do trigo que
haviam comprado, desculparam-se com o administrador, assegurando-lhe que fora
grande a surpresa deles quando, já em sua pátria, encontraram nos sacos o
dinheiro, que de novo lhe traziam. Ele fingiu ignorar de que se tratava, e eles
ficaram ainda mais tranqüilos quando puseram Simeão em liberdade.
Pouco tempo depois, voltando ao palácio do rei, entregaram a
José os presentes que o pai enviara. José perguntou da saúde de Jacó, e
responderam-lhe que era boa. E ele cessou de temer por Benjamim quando o viu
entre os demais, porém não deixou de perguntar se era aquele o irmão menor
deles. Tendo-lhe eles respondido que era, contentou-se em dizer-lhes que a providência
de Deus estendia-se a tudo. Não podendo mais conter as lágrimas, afastou-se,
para não se dar a conhecer. Naquele mesmo dia, ofereceu-lhes uma ceia,
determinando que se sentassem à mesa na mesma posição e ordem que adotavam em
casa. Tratou-os assim muito bem e fez servir uma porção dobrada a Benjamim.
77. Gênesis 44. Ordenou em seguida que lhes dessem o trigo
que desejavam levar e acrescentou, por ordem secreta, que quando estivessem
dormindo se pusesse de novo nos sacos o dinheiro do pagamento e que
escondessem, além disso, no saco pertencente a Benjamim, a taça em que ele,
José, comumente se servia. Queria desse modo experimentar a disposição dos
irmãos para com Benjamim, para ver se o auxiliariam quando ele o acusasse
daquele furto ou se o abandonariam sem se incomodar com a sua sorte.
Sua ordem foi executada. Eles partiram ao raiar do dia, com
grande júbilo por terem reconquistado o seu irmão Simeão e cumprido a promessa
para com o seu pai, restituindo-lhe também Benjamim. Entretanto ficaram espantados
quando se viram cercados por uma tropa de cavalaria, junto da qual estavam os
servidores de José que haviam escondido a taça. E perguntaram a estes por que
motivo, depois de o senhor deles os haver tratado com tanta cordialidade, os
perseguiam com tanta insistência.
Os egípcios responderam-lhes que a bondade de José, de que
se vangloriavam, ressaltava-lhes ainda mais a ingratidão e os tornava mais
culpados, pois, em vez de reconhecerem os favores que haviam recebido, não
tinham tido escrúpulo de roubar a taça de que ele se servira para lhes dar, num
banquete, demonstrações de sua estima e haviam preferido um roubo tão
vergonhoso à honra da boa graça, expondo-se ao perigo que os ameaçava, se
fossem descobertos. Porque eles não podiam deixar de ser castigados como
mereciam, pois, se haviam podido enganar o encarregado da guarda daquela taça,
não podiam enganar a Deus, que revelara o roubo, não permitindo que dele se
aproveitassem. E em vão fingiam ignorar o fim que os levara ao encalço deles,
pois o castigo que receberiam fá-los-ia conhecer o motivo.
O egípcio que assim falava acrescentou a isso mil censuras,
mas como os irmãos se julgavam inocentes, não se incomodaram com as
recriminações, achando loucura que fossem acusados de tal roubo — eles, que depois
de encontrarem nos sacos o dinheiro do trigo que haviam comprado, tinham-no
restituído em boa-fé (embora ninguém disso soubesse), o que era uma maneira de
agir bem contrária ao crime de que os acusavam. Como uma busca poderia melhor
justificá-los que as palavras, a confiança que tinham em sua inocência
tornou-os tão ousados que insistiram com os egípcios que examinassem os sacos,
acrescentando que estavam dispostos a serem todos castigados se um só deles
fosse tido como culpado.
Os egípcios aceitaram a sugestão e determinaram fazer a
pesquisa com uma condição mais favorável; contentar-se-iam em prender somente
aquele em cujo saco a taça estivesse escondida. O oficial remexeu então em
todos os sacos, iniciando propositadamente pelos dos mais velhos, a fim de
reservar o de Benjamim para o final. Não porque não soubesse em qual saco a
taça se encontrava, mas para dar a impressão de que se desobrigava muito bem de
sua incumbência. Assim, os dez primeiros, nada receando por eles mesmos e não
julgando que houvesse algo a temer por Benjamim, queixaram-se de seus
perseguidores e do atraso que estava causando aquela busca injusta. No entanto,
quando abriram o saco que pertencia a Benjamim e ali acharam a taça, a surpresa
de terem caído em tal desdita quando já se julgavam fora de qualquer perigo
causou-lhes tão viva dor que eles rasgaram as próprias vestes e só conseguiam
gritar e gemer. Isso porque imaginaram logo o castigo inevitável para Benjamim
e ao mesmo tempo lembraram que haviam solenemente prometido ao pai restituir-lhe
o filho menor. E, para cúmulo da aflição, sentiam-se culpados da desgraça de um
e de outro, pois foram os seus insistentes pedidos que levaram Jacó a
decidir-se mandar Benjamim com eles.
Os cavaleiros, sem demonstrar comoção com as suas queixas e
lágrimas, levaram Benjamim a José, e seus irmãos o seguiram. José, vendo
Benjamim nas mãos dos soldados, assim falou aos irmãos esmagados pela dor:
"Miseráveis que sois! Respeitais, então, tão pouco a providência de Deus e
sois tão insensíveis à bondade que vos testemunhei que tenhais tido a coragem
de cometer uma ação tão baixa para com o vosso benfeitor, que vos recebeu com
tanta cordialidade?" Essas poucas palavras causaram-lhes tal confusão que
somente puderam se oferecer para libertar o irmão e serem castigados em seu
lugar. Diziam entre si, uns aos outros, que José era feliz, pois se havia
morrido, estava livre das misérias da vida, e, se estava vivo, ser-lhe-ia
glorioso que Deus julgasse digno o severo castigo que sofriam por causa dele.
Confessavam ainda que não poderiam ser mais culpados do que já o eram para com
o pai, por terem acrescentado nova aflição à que ele já suportava pela perda de
José. E Rúben continuava a censurar-lhes o crime que haviam cometido contra o
irmão.
Disse-lhes José que, como não duvidava da inocência deles,
permitia que regressassem, contentando-se em castigar aquele que cometera o
crime, pois, assim como não era justo pôr em liberdade um culpado para ser
agradável aos que não o eram, do mesmo modo não seria razoável fazer sofrer
inocentes pelo pecado de um só. E assim, eles podiam partir quando quisessem,
que ele lhes garantiria toda a segurança.
De tal maneira essas palavras penetraram-lhes o coração que
todos, exceto Judá, ficaram impossibilitados de responder. E, como era muito
generoso e havia feito ao pai a promessa de lhe reconduzir Benjamim, resolveu
expor-se, para salvá-lo, e assim falou a José: "Reconhecemos, meu senhor,
que a injúria que recebestes é tão grande que não pode ser assaz rigorosamente
castigada. Assim, ainda que a falta seja exclusiva de um só e do mais moço de
todos nós, queremos receber todos juntos o castigo. Embora pareça que nada
devamos esperar em favor dele, não deixamos de confiar em vossa clemência e
ousamos prometer a nós mesmos que seguireis, preferivelmente, nesta ocorrência,
os sentimentos que ela vos inspirar, que não os da vossa justa cólera, pois é
próprio das grandes almas, como a vossa, sobrepor-se às paixões pelas quais as
almas vulgares se deixam vencer. Considerai, por favor, se seria digno de vós
fazer morrer pessoas que não querem ter a vida senão pela vossa bondade. Não
será a primeira vez que vós a tereis conservado, pois, sem o trigo que nos
permitistes comprar, há muito tempo a fome nos teria matado a todos. Não
permitais, portanto, que tão grande obrigação, de que vos somos devedores,
fique inútil, mas fazei que tenhamos ainda uma segunda, que não será menor que
a primeira, pois é conceder em duas maneiras diferentes uma mesma graça:
conservar a vida aos que a fome teria feito morrer e não tirá-la àqueles que
merecem a morte. Vós nos salvastes, dando-nos com que nos alimentarmos.
Fazei-nos agora gozar desse favor por uma generosidade digna de vós. Sede cioso
de vossos próprios dons, não vos contentando de nos salvar uma só vez a vida.
E, certamente, eu creio, Deus permitiu que tenhamos caído em tal infortúnio
para fazer brilhar mais a vossa virtude, pois, perdoando aos que vos ofenderam,
fareis ver que a vossa bondade não se estende somente aos inocentes, que têm
necessidade da vossa assistência, mas também aos culpados, aos quais a vossa
graça é necessária. Embora seja coisa muito louvável socorrer os aflitos, não é
menos digno de um homem elevado a um alto cargo esquecer as ofensas
particulares que lhe são feitas. É glorioso perdoar as faltas leves. É imitar a
Divindade, que dá a vida aos que merecem perdê-la. Se a morte de )osé não me
tivesse feito conhecer até que ponto vai a extrema ternura de nosso pai para
com os seus filhos, não insistiria eu tanto junto de vós pela conservação de um
filho que lhe é tão caro. Se eu vo-lo faço, é somente a fim de contribuir para
a glória que teríeis em perdoar-lhe, enquanto nós suportaríamos morrer com
paciência, se um pai que nos é tão querido e venerado se pudesse consolar com a
nossa morte. Mas nós, embora sejamos moços e comecemos a desfrutar os prazeres
da vida, sentimos muito mais o mal dele que o nosso e não vos rogamos tanto por
nós quanto por ele, que não somente está acabado pela idade, mas também pela
dor. Podemos dizer, com verdade, que é um homem de grande virtude, que nada
omitiu nem esqueceu para nos levar à sua imitação e que seria bem infeliz se
lhe fôssemos causa de aflição. A nossa ausência já o faz sofrer de tal modo que
ele não poderia suportar a notícia da nossa morte. A vergonha de que seria
acompanhada abreviaria, sem dúvida, os seus dias, e, para evitar a confusão que
isso lhe causaria, ele preferiria deixar este mundo antes que a notícia se
espalhasse. Assim, embora a vossa cólera seja muito justa, fazei com que a vossa
compaixão por nosso pai seja mais poderosa sobre o vosso espírito que o
ressentimento pela nossa falta. Concedei essa graça à velhice, pois ele não se
poderia resignar a sobreviver à nossa perda. Concedei-a na qualidade de pai,
para honrar o vosso, na vossa pessoa, e honrar-vos a vós mesmo, pois Deus vos
deu essa mesma qualidade. Deus, que é o pai de todos os homens, vos tomará
feliz na vossa família se f izerdes ver que respeitais um nome que tendes em
comum com ele, deixando-vos levar pela compaixão para com um pai que não
poderia suportar a perda de seus filhos. Nossa vida está em vossas mãos: assim
como podeis no-la destruir com justiça, podeis também, pela graça, no-la
conservar. Ser-vos-á tanto mais glorioso imitar, no-la conservando, a bondade de
Deus, o qual no-la deu, pois não será a um só, mas a vários que a conservareis.
Dá-la a nosso irmão será dá-la a todos, pois não nos poderíamos resolver a
sobreviver nem a voltar sem ele a nosso pai, e tudo o que lhe acontecer será
comum conosco. Assim, se nos recusardes esta graça, nós só vos pediremos que
nos façais sofrer o mesmo castigo ao qual o condenareis, pois ainda que não
tenhamos parte no seu crime preferimos passar por cúmplices de sua falta e ser
com ele condenados à morte que sermos obrigados por nossa pena e dor a morrer
por nossas mesmas mãos. Não vos direi, senhor, que, sendo ele ainda jovem e
sujeito às fraquezas de sua idade, a humanidade parece obrigar-vos a
perdoar-lhe. Omitirei de propósito muitas outras coisas, a fim de que, se não vos
deixardes comover pelas nossas palavras, se possa atribuir disto a causa: a ter
eu mal defendido o meu irmão. Mas se, ao contrário, vós lhe perdoardes, pareça
que nós somos devedores disso unicamente à vossa clemência e à penetração de
vosso espírito, que terá conhecido melhor do que nós mesmos as razões que podem
servir à nossa defesa. Mas, se não formos tão felizes e quiserdes castigá-lo, o
único favor que vos peço é fazer-me sofrer a mesma pena em seu lugar e
permitir-lhe que volte para o nosso pai. Ou, se a vossa intenção é conservá-lo
como escravo, vereis que eu estou mais em condições do que ele de vos prestar
esse serviço".
78. Judá assim falou e, demonstrando que estava pronto a se
expor alegremente para salvar o irmão, lançou-se aos pés de José, a fim de nada
esquecer que pudesse comovê-lo e levá-lo a conceder-lhe a graça que pedia. Os
outros irmãos fizeram o mesmo, e nem um só deixou de se oferecer para ser
castigado em lugar de Benjamim. Tantos testemunhos de uma amizade tão
verdadeiramente fraterna comoveram o coração de José. Então, não podendo mais
continuar a fingir-se encolerizado, ordenou aos que estavam presentes que
saíssem do quarto.
Quando ficou sozinho com os seus irmãos, José deu-se a
conhecer, falando-Ihes deste modo: "A maneira como me tratastes outrora
dava-me motivo para vos acusar de má índole. Tudo o que fiz até aqui teve como
finalidade apenas submeter-vos a uma prova. Porém a amizade que demonstrais
para com Benjamim obriga-me a mudar a minha opinião e mesmo a crer que Deus permitiu
o que aconteceu para disso tirar o bem de que desfrutais agora e que espero de
sua graça seja ainda maior para o futuro. Assim, vendo que meu pai está
passando bem, melhor do que eu mesmo imaginava, e testemunhando o vosso afeto
por Benjamim, não é meu desejo lembrar-me do passado, a não ser para atribuí-lo
ao nosso Deus e para vos considerar como tendo sido naquele fato um ministro da
providência. E, da mesma forma como o esqueço, quero que esqueçais também, e
que este tão feliz acontecimento, fruto de um mau conselho, vos faça apagar o
opróbrio de vossa falta, de modo a não vos restar desprazer algum, porque ela
ficou sem efeito. Por que o desprazer de tê-la cometido vos causaria agora
tristeza? Alegrai-vos, ao contrário, pelo que aprouve a Deus realizar em nosso
favor e ide imediatamente consolar o nosso pai, para que a apreensão em que ele
se encontra, por vossa causa, não o faça morrer sem que eu tenha a consolação
de vê-lo. Porque a maior alegria que a minha fortuna me poderá conceder é
torná-lo participante dos bens que possuo, pela liberalidade de Deus. Não
deixeis também de trazer com ele as vossas esposas, os vossos filhos e os
vossos parentes, a fim de que todos participeis da minha felicidade. E desejo-o
tanto mais porque a carestia que nos aflige durará ainda cinco anos".
José assim falou aos irmãos e abraçou-os a todos. Todos
choravam. E os irmãos de José, não podendo duvidar da sinceridade do afeto que
ele lhes manifestava e do perdão que lhes concedia, muito verdadeiro, tinham o
coração ferido de dor e não conseguiam perdoar-se a si mesmos por havê-lo
tratado com tanta desumanidade. Depois de tantas lágrimas derramadas, aquele
dia terminou com um grande banquete.
79. O rei, que soubera da chegada dos irmãos de José,
manifestou não menos alegria do que teria sentido por qualquer outra feliz
ventura que lhe sobreviesse.
Presenteou-lhes com carros carregados de trigo e grande
quantidade de ouro e prata, para levarem ao seu pai. José entregou-lhes também
outros valiosos presentes para em seu nome serem oferecidos a Jacó. Igualmente,
distribuiu presentes a todos os irmãos, além de alguns em particular a
Benjamim. Voltaram eles então ao seu país, e Jacó não teve dificuldade em
prestar fé à declaração de que o filho por quem havia chorado tanto tempo estava
não somente cheio de vida, mas elevado a tão grande autoridade, governando todo
o Egito, abaixo somente do rei. Esse fiel servidor recebeu tantas provas da
infinita bondade de Deus que delas não podia duvidar. Foi como se os fatos,
durante algum tempo, estivessem como que suspensos. Assim, ele não viu
impedimento em partir imediatamente, para dar a José e deste receber, ao mesmo
tempo, a maior de todas as consolações que um e outro poderiam desejar em vida.
Que o Santo Espirito do Senhor, ilumine
o nosso entendimento
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